Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

O camelo, a agulha e o Reino

- Você jogou na mega-sena?
- Não.
- Ah! Eu encontrei aqueles números que tinha perdido, vou apostar, o Júnior passa pra mim na lotérica...
Apenas o barulho do motor e a música no trajeto de casa até a escola.
No serviço, só se falava no prêmio milionário. Um colega pediu algum emprestado para jogar nos números “quentes”.
- Se fosse para tomar uma borrega...
Ele acabou emprestando de outro com a promessa de dividir o prêmio. Foi embora o dinheiro do Carlton. Menos mal.
Logo depois, o Jú passou no serviço para pegar R$ 2.
A colega comentou:
- Para que R$ 23 milhões, R$ 1 milhão já tava bom demais, não quero ficar rica!
Pela manhã o garçom queria R$ 1 para o bolão.
Os colegas imaginando como seria ficar milionário da noite para o dia.
- Ah!, com esse dinheiro eu vou fazer uma edícula, comprar uma Biz, fazer um churrasco de costela e tomar refricol.
Pobre é duro mesmo!
- Eu não preciso de tanto, o bastante para ajeitar a minha vida e deixar de trabalhar..., disse outra.
O dinheiro a mais faz o pobre coitado se sentir poderoso, meio bobo, rindo à toa, disfarçado de excêntrico ou cínico.
Não sei se os problemas dos ricos são tão diferentes dos do pobre. A carne tem o mesmo fim.
A maioria dos ricos que eu conheço trabalha mais do que eu. Tem mais aborrecimentos do que eu. Tem mais coisas do que eu, ar condicionado no carro, no quarto. O ócio e o tédio são terríveis. Cabeça desocupada é oficina para o diabo.
A vida tranqüila é menos sofrível, confortadora. Correr atrás do dinheiro fácil é igual tentar pegar galinha em quintal sem cerca.
Não nego o lado hipócrita, mas há muito tempo deixei de ter esses sonhos. Os pesadelos não permitem. A loteria acumulou pela 11ª vez. Quando saiu o resultado no meio da semana, o sonho do colega que emprestou os trocados desabou como um tijolo sobre o próprio pé.
Sábado de Semana Santa era chuvoso, o prêmio atormentando o imaginário dos pobres. Filas enormes nas lotéricas, com gente ficando do lado de fora mesmo sob a chuva fria e outros se encolhendo debaixo das marquises.
O Capital é um verme, diria Karl Marx.
Riquinho, a comédia familiar baseada na estória de Neil Tolkin, retrata essa epopéia paradoxal. Há algumas maneiras de se ficar com a burra cheia: nascer rico; casar com mulher abastada (vale uma feia?); trabalhar para o Beira-Mar; virar político corrupto; ganhar na loteca ou então ficar sonhando, sonhando...
Talvez sirva de consolo o provérbio bíblico: é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que o rico pisar o Reino dos Céus. O camelo pensa: “vai sobrar para mim!”
Mas há controvérsia, naturalmente. O rico pode tentar subornar São Pedro e aí nunca se sabe. Mas para que ele deseja o Reino dos Céus se só se preocupa com o material?