Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

O afresco do Gil das Trevas

 

 

O Gil das Trevas deixou algumas marcas durante o tempo em que permaneceu em Dourados seja pintando pára-choques de caminhões, placas de veículos, paredes ou quadros malucos onde esboçou a sua visão surrealista ou fixação interplanetária. Sempre achou que um dia os discos voadores baixariam na terra e seres cinematográficos sairiam às claras para provar que no Universo não existem apenas os terráqueos.

Ao mesmo tempo em que fazia essas viagens celestiais em seus quadros, sem nunca ter freqüentado escola de Belas Artes e muito menos conhecer os autores famosos e suas técnicas, tinha a capacidade de desenhar afrescos com seus traços rústicos, simples, mas impressionantes formando belas paisagens.

Um desses afrescos pode ser visto no Recanto dos Amigos, na Rua Leônidas Além, na direção da BR-463, onde os causos de pescadores o inspiraram a desenhar uma espécie de cachoeira que começa do lado de fora do prédio e termina na parte interna – a paisagem também pode ser vista de forma inversa, mas a ligação entre uma e outra é inevitável.

A externa parece uma miniatura, a de dentro, um rio caudaloso com a imagem de pescadores, um deles capturando um dourado, uma barraca, o cachorrinho pupi – nome dado pelo próprio autor - correndo atrás do macaco, castanheiras em pleno cerrado, montanhas, um crepúsculo e outros detalhes imaginados pelo Gil.

As pinturas foram feitas em 1999 e Gil trabalhou nelas entre dois a três dias entre uma folga e outra e uma dose de cachaça.

“Quando ele jogou a tinta na parede, eu achei que ia estragar toda a pintura que tinha sido feita”, comentou o dono do estabelecimento, Adolfo Ladi Rodrigues Paz, 46 anos. “Mas permanece aí um pouquinho da construção dele, o cara era bom mesmo (...) Eu contei umas histórias de pescadores para ele e como aqui vêm muitos pescadores, ele se inspirou nisso (...) Todo mundo que vê gosta dessa arte (...)”.

Nelson Braga do Amaral Júnior, 27, lembra de quando Gil trabalhava no afresco e também admira o trabalho feito à base de tinta acrílica. “(...) Muita gente fica olhando, é uma imagem fora de série (...)”.

Valdenir Amaral, 39, opina que “é uma obra de artista mesmo”. Dizem que há trabalhos idênticos perdidos em outros cantos da cidade, mas como é uma obra popular, de certa forma desconhecida, nascida a partir da visão empírica dos fatos e da vida, não encontra reconhecimento no meio acadêmico, mesmo porque nenhum profissional do gênero, até onde se saiba, avaliou se Gil das Trevas tinha realmente talento e qualidade para a coisa ou simplesmente pintava aquilo que lhe vinha à mente, sem preocupação técnica para o que fazia.

O próprio Gil deixou essas questões em aberto, razão pela qual a sua arte carece de uma avaliação profissional. Nenhum dos que opinam neste texto tem conhecimento aprofundado na área, falam apenas aquilo que seus olhos dizem e sentem.

Valmir Alves Sampaio, 54, o “Bodocó”, acha, igualmente, o trabalho bom demais. “Dou nota dez!”.

Contam que Gil morreu em Rondônia há algum tempo, ainda jovem, talvez com 40 anos, pouco menos ou pouco mais. Na década de 70, exatamente em 1974, eu o conheci no Colégio Agrícola de Cândido Mota (SP), onde ele iniciou o curso de Monitor Agrícola mas não o concluiu.

No início da década de 80, fui reencontrá-lo na Rua Belo Horizonte, no Jardim Independência, em Dourados, na época morando com a mãe dele. Como ele era um aventureiro, vivia viajando pelo país afora de carona, ganhando dinheiro pintando um e outro pára-choque de caminhão ou então fazendo afrescos como o do Recanto em troca de algum dinheiro, comida e bebida.

Uma vez eu ganhei um quadro dele, pintado em cima de um compensado. Era o desenho de um vale imaginado, segundo afirmou, em um sonho esquisito, com uma Lua e respingos que pareciam o satélite em choro decadente. Cenário de outro planeta, coisa de filmes de ficção. A ação do tempo danificou a pintura, ficando apenas a lembrança dos porquês e das razões que levam a mente, a inteligência, o pincel e as cores a se encontrarem em júbilo doidivanas.