Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

O sapato que deixou o homem descalço

Copiando a expressão de Rubem Braga, se me perguntarem com quem foi, digo que não sei, se me perguntarem onde foi, direi com o habitual cinismo que não sei.
O cidadão saiu para uma divertida e animada sexta-feira à noite e vestiu a domingueira, inclusive os sapatos Amadini, de couro, usado para festas. Operário não usa sapatos bonitos todos os dias, a não ser os operários de luxo ou então os metidos a besta.
Ele tinha comprado aqueles sapatos caros há dois anos e ainda estava novinho em folha, um brinco. Mas, para surpresa, ele sentiu algo estranho ao andar, algo mais macio e confortável, como se o solado tivesse amortecedores. De repente, entre amigos, sentiu um dos pés torto.
Olhou para o solado e uma parte tinha se soltado e por onde passou se via um rastro de borracha, como se um carro tivesse dado uma freada brusca no local.
Sem entender direito o que estava acontecendo, o solado foi se esfarelando aos poucos, até não sobrar mais nada, a não ser migalhas de um material preto por todo lado. Restou apenas o couro e a única coisa isolando o contado direto dos pés com o chão frio foi a elegante meia. Entre um sorriso disfarçado e outro, o cidadão foi dando um jeito de sair de fininho e ir embora praticamente descalço, apenas com a “fachada” dos sapatos. Foi o tipo de decepção, digamos assim, indescritível. Desconcertante, mas cômico para quem não sentiu a pimenta nos olhos.
Na segunda-feira, ligou para a loja para se queixar. Sabia que não poderia ter outro par em troca, pois, fazia tanto tempo que tinha adquirido-o e a garantia se esgotara. Mas pelo menos quis deixar a reclamação registrada. A vendedora disse então que outros clientes relataram o mesmo problema e que os sapatos de hoje em dia são assim. A qualidade do solado é inferior e é preciso usar os sapatos e não deixá-los apenas para ocasiões especiais, como no tempo do vovô.
Ela ainda saiu com esta: “ou você acaba com os sapatos, ou então eles se acabam sozinhos!” Grande resposta, pensou o inconformado cidadão.
Dias desses ficou sabendo de uma colega uma situação parecida. Um dos pares dos sapatos dela quebrou o salto sem mais nem menos, deixando-a descalça. Com raiva, chegou em casa e jogou o celular no chão. Aí ele perguntou: “mas o que o celular tem a ver com o sapato?” Ela respondeu: “Pois é, não sei...”.
De agora em diante, nada de deixar os sapatos guardados no armário apenas para o tour das baratas. De nada resolve reclamar para a tal de Amadini. O custo da ligação não compensa. Tempos modernos, ou melhor, pós-modernos, têm a ousadia e a petulância de deixar a pessoa descalça pelos próprios sapatos! O velho sapateiro deve dar boas risadas dessas porcarias que vendem hoje em dia, com aparência lustrosa, mas com péssima qualidade.
O cidadão imaginou o pior. Os sapatos poderiam ter virado farinha em um local onde não poderia sair de fininho. A colega levou um prejuízo maior: perdeu os sapatos e o aparelho celular...