Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

O sr. Ninguém

O sr. Ninguém anda pelo centro da cidade indiferente às pessoas, absorvido em seus próprios pensamentos. Maltrapilho, depende da solidariedade alheia para se alimentar, mas a ajuda sempre tem uma sombra de desprezo porque o desejo é se livrar do homem sujo, barbudo, de olhar triste e distante. Raros são aqueles dispostos a um diálogo, mais raros ainda aqueles que estendem a mão amiga com amor.
Ele deve ter um nome, mas ninguém se importa com isso. Não carrega documentos, a sua existência basta para identificá-lo, para a sociedade ignorá-lo. Não tem força e nem disposição para o trabalho, a oportunidade e a confiança abandonaram-no.
Para quem o observa, fica fácil concluir como o sofrimento soterrou o último rastilho de felicidade. A rua é sua família e mesmo sem ter nada a oferecer, a amizade de um cachorro “vira lata” salva-o da solidão absoluta. O animal apegou-se ao “sr. Ninguém”. O carinho resiste ao amargo. Lembra Carlitos, em “O Vagabundo”, sem a bengala, sem o chapéu-de-coco, com calças largas parecidas.
Dizem que cada um carrega uma cruz, não há felicidade completa. As decepções são surpresas que podem ser encontradas na primeira esquina e o vírus do sofrimento, da dor, são parasitas prontos para sugar a carne.
Aquele homem devolveu o seu desprezo para a sociedade e não consegue se fixar, construir uma vida que muitos consideram o mínimo de decência. O “sr. Ninguém” não é um derrotado, é apenas um viajante do trem dos errantes, no vagão dos sem rumo.
Não se atreve a provocar seus semelhantes com palavras chulas, a sua humildade e condição de miséria limitam-no à conjugação do verbo pedir. “Por favor”, “muito obrigado...”.
Quem consegue arrancar algo mais pode se sentir privilegiado. Sorri como se estivesse pedindo “deixem-me quieto” quando perguntam sobre seu passado. Não sabe mais sabe de onde veio, não se preocupa para onde vai.
Depois de tanto errar, desistiu de querer acertar. Há um dito popular segundo o qual a esperança é a última que morre. O “sr. Ninguém” não consegue entender o significado de “esperança”. Ele e seu cãozinho se contentam com o dia seguinte. Não é jovem nem velho, mas o rosto enrugado, fios brancos em seus cabelos revelam os traços de uma vida difícil, de um herói alheio à indiferença, de um homem abandonado à sua própria loucura.
Vive em abrigos, face, roupa e pés sujos atestam: há dias não se depara diante do espelho. Esqueceu-se da própria imagem.
Ouviu um vendedor anunciando as ofertas para o Dia dos Pais. Apenas ouviu, bocejou algumas palavras sem sentido, abriu um sorriso de cinismo e calou-se novamente.
Os comerciantes pedem para a polícia afastá-lo das ruas centrais porque, como um patinho feio, sua presença contrapõe as vitrinas bonitas e as pessoas com dinheiro no bolso.
Ele recua para as esquinas periféricas, senta-se sob uma marquise, pede, em vão, uma esmola para uma elegante senhora. O “sr. Ninguém” está acostumado ao desdém. Ele deve saber : apenas a morte torna-o igual aos senhores com roupas bonitas e carrões. O Divino, este sim, sabe ser justo.