Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

Causo natalino

Dois ou três dias antes do Natal, o supermercado parecia um formigueiro. Aquela correria típica de final de ano, de brasileiro habituado a deixar tudo para a última hora.
Se para o freguês com dinheiro no bolso o consumismo vira transtorno, é possível imaginar a correria dos caixas, dos ensacadores e dos funcionários encarregados das entregas. Para complicar um pouco mais a situação, aquela tarde era chuvosa. Ruas transformaram-se em atoleiros. Mas as compras tinham que chegar ao destinatário em tempo hábil.
O atropelo gera surpresa agradável para uns e desagradável para outros ou até circunstâncias mesclando as duas coisas. Uma equipe fazia a entrega na periferia e em uma certa rua. A casa com o número 600 estava fechada. O funcionário do supermercado não titubeou. Pulou o muro, colocou as compras na porta da frente, cobriu-as com plástico para não molhar e foi embora. “Qual é a próxima?”, perguntou para o colega. Não podia parar o serviço, de maneira alguma.
No final do expediente, uma freguesa liga desesperada para o supermercado reclamando a compra. Confere daqui e dali, endereço e tudo mais e o gerente chamou os dois rapazes que tinham feito a entrega naquela parte da cidade. Eles se lembraram da casa fechada. “O erro só pode estar lá, mas o número está certo...”, comentou um deles.
Na dita cuja rua existiam dois números 600. Era uma vila nova, todas as casas iguais financiadas pelo governo e os endereços não estavam todos corretos.
Dirigiram-se para o local e encontraram uma cena hilária e desconcertante. Tinham que reaver as compras senão pagariam do próprio bolso.
Na casa onde tinham feito a entrega errada, encontraram a dona “meio alterada” porque tinha tomado oito latinhas de cerveja da compra. O filho bebeu todo o iogurte e o cheiro de lingüiça frita espalhado pelo ambiente, podendo ser sentido da rua. Mãe e filho, pobres, estavam começando a acreditar em Papai Noel.
Os rapazes explicaram o ocorrido e a mulher resmungou: “fazer o quê? Eu fiquei surpresa com essa comida toda na porta da minha casa, pensei que Papai Noel finalmente tinha visto a gente...” O filho, resignado, permaneceu calado. Ela já tinha colocado as batatinhas na cesta, as compras no armário, guardado a carne na geladeira e a cerveja estava no ponto. “Talvez seja por isso que alegria de pobre dura tão pouco”, se lamentou.
Os rapazes pegaram as compras. Perderam apenas uma pequena quantia, a caixa de cerveja, a lingüiça, iogurte, bolacha, essas coisinhas. O menino estava com a barriga estufada de tantas guloseimas.
“Chefe, resolvido o problema...”, disseram ao gerente no retorno ao supermercado. “Foi chato tirar as compras da mulher, coitada, pobrezinha, ela ficou triste”, comentou um deles.
“Espero que isso não se repita, viu só o problema que vocês causaram”, advertiu o gerente, passando sermão nos dois. À noite, ambos tomando uma cerveja para descansar do dia corrido, começaram a relembrar a história e a rir da presepada, da cena da mulher bêbada e feliz com a benevolência alheia, querendo entender quem tinha sido a boa alma que levou tão gorda cesta para a casa dela.
“Você viu a cara do menino suja com o iogurte...ele se lambuzou todo...”. Pensaram mais um pouco e refletiram sobre o ocorrido.
No dia seguinte, logo cedinho, os dois compraram uma cesta básica e levaram para a mulher pobre. Ficaram comovidos com a situação. Não era igual à primeira, com tantas coisas, mas quebrava o galho por mais alguns dias. É bem verdade que muitas vezes Deus escreve certo por linhas tortas.