Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

Devolve o bode!

A tradição de se roubar galinhas na Sexta-Feira Santa (roubar é uma tradição?) levou um grupo de rapazes a uma situação engraçada, para não dizer quase desastrosa.
Saíram na calada de noite, dois deles, para “buscar” galinhas no sítio de um primo. Lá chegando, sob um breu absoluto, não encontraram galinha alguma. Apenas um bode. “Não vamos sair daqui sem nada”, disse um deles. “Vamos levar este bode”.
- Béééééé...
Retornando ao local onde a idéia surgiu, o terceiro companheiro se surpreendeu. “Um bode?”. Quando o animal ficou sob a luz, eles puderam comprovar o esplendor do menino. Era um bode vistoso, barbicha para humilhar o ermitão, um pelo sadio, um olhar assim tipo “onde eu estou” e com medo de virar carne para churrasco.
O terceiro amigo alertou: “vocês ficaram loucos, esse bode é de raça...!”. “Não, nós não vamos devolvê-lo”, retrucaram os outros dois.
“Vamos comê-lo...”. “Olha, veja bem...”.
Resolveram não matá-lo. Devolvê-lo era o problema. O primo se sentiu na obrigação de assumir a culpa e contar o que tinha acontecido. Ao devolver o animal levou um “sabão” daqueles, uma rígida cobrança de compostura.
Resultado: três amigos que poderiam muito bem comprar uma dúzia de galinhas no açougue, passaram a ser vistos como arteiros.
Tantos anos depois, aquela passagem surge na lembrança de um deles. “Está vendo, não adianta fazer as coisas erradas (...) Você imagina se a gente tivesse matado aquele bode, nós iríamos para a cadeia, é crime (...) Teria dado o maior bode...”, sorri com ar duvidoso e maroto.
O bode era um campeão. Ostentava troféus em exposições e o caso quase vira boletim de polícia. As partes envolvidas passaram momentos de angústia, culpa, dúvida e susto. Todos poderiam sair prejudicados: coitado do bode se a barbicha não chamasse tanta atenção!
Churrasqueira ou delegacia, das duas uma não seria!
Entendi porque o velho amigo quanto avista um herbívoro da espécie, logo acena: “olha o bode!” Fico pensando como a ousadia e a petulância dos jovens podem causar uma forte emoção e um estrago danado. A pisada de bola ficou entre família, mas o bode virou um trauma para os que conhecem a história.
O trágico virou comédia, virou algo subjetivo. Bode virou sinônimo de qualquer coisa errada ou pequeno deslize. “Que bode!” Ou de burrice. Roubar apenas para se sentir corajoso em uma noite santa, em meio à ameaça de coice, mordida, berros e tiro de garrucha, é uma tolice sem tamanho (si a tolice tem tamanho!).
Nunca se deve furtar, nunca, diz o testamento bíblico, a lei e o porrete do delegado.
Mesmo assim ainda tem maluco por aí cometendo o mesmo erro. Hoje, com toda certeza, o bode deve ter morrido porque o episódio já tem duas décadas. Quem sabe, lá no calmo jardim do éden, ele esteja se recordando, com habitual berro, daquela enroscada. O arrependimento pode mudar o rumo de uma vida, um aprendizado, mas pode também virar um fantasma. Ainda bem que bode de carne e osso não virou um bode de delegacia.