Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

As aranhas do cine Ouro Verde

Na sexta-feira à noite (18.03), no sarau fermentado do Takeo, durante a roda de intrépidos e falantes jornalistas e amigos (Maca, Marcelo, Júlio, Clóvis, Élvio, Rolon), ficamos estupefatos com a notícia da derrubada do telhado do prédio do antigo cine Ouro Verde. Os operários estavam sentados na mesa ao lado e narraram a saga pugilista resultando na destruição de 12 mil telhas a marretadas!

Foi o suficiente para eu, o Ruço – é com cedilha mesmo porque ele não é originário da Rússia – (é, segundo ele próprio, a terceira pessoa mais conhecida em Dourados e eu não duvido) e o sempre pronto e prestativo Lourival Mesquita, cruzarmos a calçada para ver o estrago.

Judiaria, aquele monte de caco no chão. Aí perguntei se tinha sobrado alguma inteira e propomos negociar cinco intactas por meia dúzia de birra.

Dito e feito. No sábado, por volta das 12h, retornamos ao local e pegamos as últimas relíquias sobreviventes. Eu fiquei com três delas, pesadas, fortes, robustas, oriundas de Barra Bonita – sei lá de qual Estado – da olaria Antonio Reginato e Filhos.

É lógico que o prédio é particular e o dono pode fazer o que bem quiser com seu patrimônio, mas as pessoas com cabelos brancos sabem bem como era o eufórico e festejador cine Ouro Verde. De lá saiu muito namoro, namorico, mãos bobas – como disse o padre em um sermão para puxar a orelha dos jovens que ficavam namorando no escurinho em volta da igreja, se peito de mulher fosse buzina, ninguém dormia nesta cidade! - muita briga, beijos apaixonados e oportunistas, muita pipoca na cabeça dos outros, estouraram muita bomba de festa junina, muitos filmes emocionantes que fizeram as pessoas derramarem lágrimas até de crocodilo, muitos festivais musicais, apresentações e me recordo inclusive de uma visita do ministro e vice-presidente Aureliano Chaves – uma vez o Sivuca foi vaiado no local.

O Zezinho, o sapateiro do centro, conhecedor dos fatos pitorescos da cidade e que deve ter engraxado a bota de Marcelino Pires quando jovem, disse, seguramente, que o prédio foi erguido em 1958.

As aranhas do telhado, em meio aquele reboliço, ou mudaram para os prédios ao lado ou sucumbiram junto com as telhas. O Mesquita, indignado como todos, calculou que aquilo daria para cobrir pelo menos 12 casas do tipo popular e com telha da melhor qualidade! Elas ainda eram úteis para uma quase eternidade! Pensando assim, foi um desperdício. Mas quem se preocupa com esse desperdício, com reaproveitamento desse material e com a memória de uma cidade nos dias de hoje, apesar dos isolados esforços oficiais e não oficiais? O custo-benefício talvez não compensasse, mas faltou bom senso. Todos querem dinheiro, comércio, faturamento e assim por diante nessa corrente-maluca-frenética-capitalista.

Ficou, de resto, apenas o valor sentimental das telhas e aquele cheirinho de poeira envelhecida impregnado, com pelo menos meio século.

Os operários, de fora, nem sabiam que aquilo tinha sido um cinema movimentado. Sabiam apenas que tinham que cumprir a empreita.

Mais um pedaço da história de Dourados sucumbiu sob as barbas do profeta ou à sombra da careca de alguém importante. Está certo que a remodelação traz reflexos positivos, que uma loja grande está investindo no local, mas pelo menos poderiam ter pensado nessas telhas e na história do cinema cuja existência se confunde com a história de muitos douradenses e da própria cidade.  

Ainda é amarga a experiência do Clube Social. Derrubou-se o prédio original, outra judiação, para erguer aquela aranha gigante feiosa, inacabada, e não se sabe o que vai virar aquilo lá, se vai sucumbir ou se a estrutura já não está comprometida pelas intempéries, isso na visão de um leigo, lógico.

Conciliar o crescimento com a preservação da memória é um assunto que não se discute hoje em dia, seja de interesse privado ou não. O fato é que há um valor histórico e isso pertence, pelo menos subjetivamente e em tese, à coletividade. Põe-se um ervateiro gigante no centro e desaba-se o telhado do Ouro Verde. Alguém vê algum paradoxo nisso?

As minhas três telhas eu não vendo, eu não dou! Elas servem de reflexão, de inspiração e lembrança.

Cabecinhas, coroadas ou não, ricas ou pobres, carecas e cabeleiras, piolhentas ou não, ocas ou inteligentes, maldosas ou angelicais, já estiveram sob proteção daquele magnífico castelo de sonhos, emoções e pulsações.

Meu filho mais velho, com 20 e picos, não chegou a conhecer o Ouro Verde e nem se interessa pela questão, mas eu e minha companheira, professora e conselheira, já namoramos naquele escurinho e temos saudades daquela opulência graciosa. Tudo muda, inclusive a consciência das pessoas. Mas a memória aí está não para ser esquecida ou coberta por um manto de silêncio e interesse financeiro. Enquanto não houver esse entendimento e compreensão, as coisas velhas continuarão sendo tomadas e cobertas apenas pelas teias das aranhas. Elas pelo menos usam objetos velhos como ancoradouros valiosos para o silêncio que elas necessitam para meditação e feitura de suas redes elásticas.

Do Ouro Verde, a cada dia que passa, não está restando nem o pó!