Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

O Negão

 

Muito distante do reino do faz de conta, aliás, em um ambiente de muita realidade, o Negão vivia em harmonia com seus irmãos e a mãe. Seus irmãos não tinham a mesma cor. Eram galegos. Apenas um deles tinha o mesmo jeito azeviche.

Família moderna, diversificada.

Desde pequeno mostrou-se diferente. Enquanto os irmãos ficavam mais rodeando a mãe, o Negão vive na rua com seu jeito manso e matreiro, no estilo pantera, dormindo durante o dia, tomando banho de Sol como jacaré em manhãs frias.

A sua cor chega a ser reluzente.

Bonito, forte, gordo, mais esperto que os demais, embora de vez em quando apareça em casa todo machucado por causa de uma surra. Quer botar panca em lugares pouco amigáveis e acaba pagando o preço da valentia. Mas é boa praça, manso, benquisto na vizinhança.

Nas horas das refeições, sempre foi o último a comer. Deixava os irmãos e a mãe se alimentarem primeiro. É folgado e vagabundo, mas se contenta com as sobras.

Para ele a palavra crise não existe. Não está nem aí para a falta de dinheiro. Não tem essa cobiça. Vive num mundo distante, parece em outro planeta.

Enquanto seus familiares se mostravam sempre famintos e sedentos, o Negão não se importa com nada. De vez em quando bate à porta de casa com alguma caça para ajudar, mas isso é lá de vez em quando...

A vida é de pobre, mas feliz.

Pobre se satisfaz com pouco, se lambuza com pouco doce.

O Negão não esquenta a cabeça. Não é esse o seu feitio. Está fadado a ficar velho sem ter fios brancos.

Engraçado que mesmo comendo pouco, o Negão sempre está sadio. Dificilmente fica doente, apenas quando briga na rua.

À noite, gosta de ouvir a conversa dos homens que ficam bebendo no bar. Tira suas próprias conclusões. Tem um pensamento misterioso. Talvez seja para matar o tempo.

Não tem prazer pela bebida, embora tenha um primo seu, lá em Terenos, chegado a uma beiçada. Chega a dormir na pequena calçada, atrapalhando o caminho dos transeuntes.

O Negão gosta de leite e da carne de aves.

Os dias foram se passando, se passando, os irmãos e a mãe impacientes com a paciência do Negão e entre o dia e a noite, o Sol e a Lua atraiam o seu olhar. Os ponteiros dos relógios só voltavam ao mesmo ponto no dia seguinte...

Mas eles arrumaram inimigos invisíveis, aqueles que agem com falsidade e não assumem seus atos. Covardes, maldosos.

Um dia a casa amanheceu com um presente: uma anônima deu bastante comida. A família inteira ficou contente naquela manhã, pois, poderiam comer o tanto que desejassem.

O Negão agiu como sempre. Deixou os mais famintos na frente e esperou, pacientemente, pela sua vez. Aliás, foi até passear um pouco para voltar só mais tarde para casa.

Quando retornou, a surpresa: toda a sua família estava morta! A comida estava envenenada e nenhum deles podia imaginar tamanha perversidade.

O Negão olhou aquela cena tétrica e perdeu a vontade de chorar.

O Negão é um gato que se salvou por não ser guloso. O resto da sua família, cuja comida nunca saciava, morreu porque não podia ver alimento pela frente.

O Negão continua circulando o Bar do Bigode, onde mora, às vezes pára na porta da cozinha e dá uma miada rala pedindo leite, mas não insiste. De vez em quando aparece com um pardal na boca.

Seus donos ficaram com dó da ninhada e não sabem onde os bichinhos comeram alguma coisa envenenada. Só ficou o Negão.

Remodelando a moral da história: peixe guloso morre pela boca. Gato também.

Ah! Gente também.