Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

O padre e o guri

Era comum o padre abençoar casas no interior.

Aliás, ainda é, embora não como antigamente.

Sempre aparecia perto das 11h e já ficava para o almoço, lógico, ajuntava o útil e agradável ao palatável. Era e é, evidente, uma honra tê-lo sentado à mesa. O padre normalmente tem palestra agradável suave aos ouvidos, elevam os pensamentos... O céu em terra firme...

Os rabugentos são solitários.

Naquela manhã nublada, o padre negro, depois da conversa descontraída na sala, iniciou suas orações e percorreu os cômodos lançando água benta para afugentar fantasmas, maus olhados e todo tipo de coisa ruim.

No ambiente maior onde a dona-de-casa, artesã, fazia bolsas de miçangas, uma moda na época, ela havia derramado, pouco antes, um saco cheio pelo chão... Pipocaram por todo canto...

O guri foi ordenado a se agachar e catá-las.

Ao passar falando latim e jogando aquela aguinha se deparou com o garoto afoito na cata das bolinhas. Achou a cena curiosa, mas prosseguiu com as bênçãos. O guri, atentado por natureza, não foi abençoado naquele dia porque as gotinhas respingaram sobre a mesa como se fosse escudo...

O padre ficou pensativo. Seria obra divina do acaso, do espírito santo, ou não? Uma nuvem de dúvida começou a pairar na sua consciência: o garoto estaria escondido com medo de alguma coisa, escondido de propósito ou seria apenas uma tarefa caseira?

A benção tinha que valer para todos da casa, mas...

O garoto, além de olhar torto para o santo homem, estava sim é com raiva de catar tanta bolinha, nunca que acabava, aquilo tinha se espalhado por todos os cantos do cômodo, isso para não dizer que o próprio padre levou um pequeno escorregão ao pisar em cima de algumas...

Após o almoço, o doce caseiro, o padre se despediu e ainda olhou pensativo para o garoto que também tinha saído no portão e não se sentara à mesa.

O guri nunca fora chegado à Igreja. Contava pilhéria nas missas e incomodava quem estava orando. Um dia fez pipi na enorme porta da Igreja do bairro e outra vez entrou na fila só para sentir o gosto da hóstia. Detestou aquela massa de pão. Nunca fez catecismo. Havia algo dentro dele que parecia adorar o deboche àquele culto. Coisas de criança travessa, nem os pais davam conta...

O padre, no entanto, observava a rebeldia e seus sermões eram inúteis.

O menino cresceu e se tornou gente de bem.

Mas continuou arredio à Igreja. Uma vez foi padrinho de casamento e não sabia sequer o sinal do Pai Nosso mesmo depois de ter feito o curso...

O padre convenceu-se anos mais tarde: permitir que o guri ficasse debaixo da mesa na hora da benção caseira foi um erro, embora em outros dias em que fizera a visita com a mesma intenção, ele entrava por uma porta e o garoto corria por outra...

Naquele dia das bolinhas, o cheiro da cozinha era delicioso...

A fome fê-lo ignorar o pimpolho rebelde, mas jamais podia imaginar que o menino se tornaria ovelha desgarrada pelo resto da vida...

Quem sabe o guri não tivesse conserto mesmo...

Restaram, portanto, porém, todavia, senão, a dúvida na consciência.

Dizem que a dúvida salvou o bicho preguiça do estresse, esticou o pescoço da ema para enxergar cobra de longe e colocou pulgas atrás da orelha do homem.

Se Deus escreve certo por linhas tortas, há controvérsia: “pau que nasce torto não tem jeito não...”.

O padre não teve culpa.

Entre dar atenção a um peste debaixo da mesa e se apressar para o almoço gostoso, não havia dúvida...