Luís Carlos Luciano
Jornalismo e literatura se entrelaçam numa história de vida

Questão de gosto não se discute

Aquela manhã estava tão bonita, inspiradora, o Sol latejante e os passarinhos em festa nas árvores que protegem a sede da fazenda.

 

O patrão, deitado na rede, já tinha amadurecido a idéia e tomado uma decisão que achava correta, justa. Ia presentear seu velho peão, com mais de 60 anos, forte e saudável, seu capataz mais fiel e que dedicou a vida inteira na fazenda, ajudando a ampliá-la, a formar pastagens, cuidar do gado e a aumentar o patrimônio da família.

 

O “seu” Hermínio não tinha o que reclamar... Tinha capital suficiente para deixar filhos e netos bem de vida, preparados para tocar os negócios e investir em novos projetos.

 

O velho peão, portanto, merecia ser remunerado dignamente, à altura da confiança e dedicação. Estava em vias de se aposentar e mesmo aposentado, o patrão desejava mantê-lo por perto porque gostava do jeito dele, das prosas mansas e agradáveis, de trocar opiniões calcadas na vivência, além da personalidade simples sempre ter chamado à atenção, pois, era uma pessoa desgarrada de qualquer ambição material.

 

Tinha forte amor pela terra, pelos animais e pela vida bucólica.

 

Encontrava alegria em coisas do mato que o patrão não achava nenhuma graça...

 

Para o “seu” Hermínio, apesar do sossego da fazenda, aquilo era apenas um negócio.

 

Pensou então em destinar uma área para o Ramón, próxima ao riacho, e ali construir uma casa simples, mas segura para ele viver com a esposa e poder receber filhos, netos e amigos para visitas.

 

Desmembraria o terreno e faria a documentação.

 

O Ramón não precisaria mais trabalhar na fazenda, pois, tinham outros peões para a lida pesada, mas o patrão gostaria que ele continuasse orientando e cuidando para que os novatos não fizessem besteiras e não judiassem do gado.

 

Aquela área e a casa seriam o preço da sua gratidão, imaginou.

 

Quem não gostaria de ter um presente assim na velhice? Queria ficar de bem com sua consciência, com Deus e é, lógico, com o Ramón.

 

O patrão lembrava do tempo em que começou com pouca coisa e do dia em que apareceu Ramón pedindo emprego, recém-casado, com boas referências, e nunca mais foi embora...

 

Homem trabalhador, de fibra, de confiança, hábil no trato com os animais, amansador de burro bravo, não tinha tempo ruim.

 

A consideração fora conquistada na lida, na obediência e no respeito mútuo.

 

Chamou então o funcionário para uma conversa, em meio a uma e outra cuia de tereré:

 

- Ramón, sabe, está chegando o tempo de você se aposentar e eu gostaria de presenteá-lo com algo de valor em consideração ao longo tempo que estamos juntos...

 

- Que isso “seu” Hermínio, num careci não. Os miós anos de minha vida passei aqui... Tive meus guris, vi essa invernada cresce inté perde de vista... O sinhô sempre foi bom comigo... Sempre me amparou nas horas difíceis...

 

- Não, deixa de ser humilde homem... Escolhe um pedaço de terra lá perto do riacho, o seu trabalho me ajudou a prosperar na vida... Então, se não quiser ficar aqui, pode escolher uma casinha lá na cidade querendo estar perto dos filhos e dos netos, com mais conforto, ou alguma outra coisa de valor equivalente, pode ser em gado, em dinheiro, do seu gosto...

 

Ramón pensou um pouco, fitou aquele horizonte verde e disse:

 

- Sabe patrão, eu num quero essas coisas de valor não... Adespois quando eu e minha véia morrê, os fios vão ficá brigando pur causa de pedaço de terra... Quero sim ficá aqui memo na fazenda, si o sinho deixa, tem os piãos novos prô trabaio pesado, eu fico só oiando e cuidando... Sabe patrão, se o sinho quer fazê gosto meu, eu tenho vontade memo é de cume na churrascaria que tem lá na beira da estrada, perto da cidade, cheia de carne de tudo jeito, maminha, picanha, lingüiça de porco... Pareci tão bom e gostoso...

 

- Mas, só isso? Você está certo disso Ramon? Não quer um tempo para pensar melhor sobre minha proposta?

 

- Não careci. Essas coisas a gente não tem que pensa muito, sinão a tentação fica infernizando as idéia da genti e eu num gosto de purga atrás da oreia não...

 

- Se você prefere assim, amanhã mesmo vamos lá na churrascaria, mas de qualquer jeito vou dar um tempo para você...

 

- O sinho querendo assim tá bom...

O patrão então levou o capataz para a melhor churrascaria da cidade e depois daquela comilança ele pegou um palito e começou passá-lo entre os dentes, escondendo o gesto habitual com a mão em forma de concha...

 

O empregado, com a pança cheia se manteve acanhado durante o tempo todo porque o lugar era chique para ele. Não tinha afinidade com esses ambientes...

 

Sentia-se um estranho no ninho, pois, em mais de 30 anos tinha ido pouquíssimas vezes na cidade.

 

Repetiu o gesto do patrão. Apanhou um palito e fez a mesma posição com a palma da mão em forma de conchinha em frente da boca...

 

No caminho de volta à fazenda, o patrão quis saber:

 

- Então, Ramón, gostou da churrascada, está satisfeito?

 

- Tava boa demais “seu” Hermínio. Nunca comi tanto. Mas me adesculpe a pergunta de um homem modesto, como o sinho sabe, que só vive no meio do mato. Eu num entendi uma coisa. Afinar de conta porque adespois daquela refeição mir de boa à gente tem que come o palitinho que num tem gostio de nada como sobremesa?

 

O patrão não se conteve e soltou uma bela gargalhada...